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SOFRIMENTO É UMA COISA QUE NÃO SE REPARTE? FREI BETTO E A
MEMÓRIA SOBRE SUAS VIVÊNCIAS DURANTE A DITADURA MILITAR EM
BATISMO DE SANGUE1
Nicolas Fernandes Gonsalves 2
Resumo: Na obra Batismo de Sangue (1982), Frei Betto, fala sobre a sua atuação e a dos frades
dominicanos na resistência contra a ditadura militar. Com isso, ele traz uma narrativa com aspectos
autobiográficos sobre o período em que viveu na clandestinidade e em que esteve preso, falando
também sobre outras pessoas com quem conviveu durante esta época. O objetivo deste trabalho é
apontar reflexões – e conclusões chegadas a partir delas – sobre como podemos compreender aspectos
da ditadura militar brasileira (1964 – 1985) analisando esta obra sob a perspectiva da História do
Tempo Presente. Acredita-se que isto permite uma melhor compreensão sobre o uso de obras literárias
– autobiografias, mais especificamente – pela História de forma mais ampla. Para esta análise de fonte,
será realizado o diálogo com autores desta linha teórica, como François Hartog e Henry Rousso, bem
como autores que tratam sobre o período ditatorial no Brasil, como Carlos Fico e Marcos Napolitano.
Palavras-chave: Literatura; Autobiografia; Ditadura militar brasileira; Frei Betto.
Na noite de 4 de novembro de 1969, o Corinthians jogava contra o Santos no
Pacaembu, na capital paulista. É com este jogo que Frei Betto inicia o seu livro Batismo de
sangue. Isto porque no intervalo da partida, uma notícia foi dada pelo locutor para o público
que enchia o estádio: “Foi morto pela polícia o líder terrorista Carlos Marighella.” (BETTO,
1983, p. 4).
A primeira parte deste livro, intitulada Carlos, o itinerário, é dedicada a contar sobre a
vida de Marighella. Nasceu em 5 de dezembro de 1911 no estado da Bahia. Quando adulto,
estudou Engenharia Civil, mas não chegou a se formar, pois saiu do curso para se filiar ao
Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual ingressou em 1934. Porém, durante a ditadura
militar, no ano de 1966, saiu da Comissão Executiva do Partido devido a discordâncias que já
vinham ocorrendo há alguns anos, mas aumentaram com o debate sobre como enfrentar o
regime autoritário que havia se instalado no Brasil em 1964. Fez isto através da Carta à
1 Referência à seguinte passagem: “O medo gera um raciocínio excludente. Percebe-se o que não convém. A melhor saída é
sempre a mais arriscada, sobretudo quando temos consciência de que ninguém deve sofrer por nossa causa. Sofrimento é
coisa que não se reparte.” (BETTO, 1983, p. 92).
2 Mestrando em História, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH- UDESC). E-mail: nicolasfernandesg2020@gmail.com.
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possui uma narrativa linear durante os capítulos em que Frei Betto fala sobre sua vida, e este
evento é o primeiro em uma linha cronológica desta narrativa.
De acordo com o autor, “A conversa girou em torno da história da Igreja, da
importância do Concílio Vaticano II e da visão social e política dos cristãos.” (BETTO, 1983,
p. 45). Ele também afirma que ele e Frei Osvaldo tinham em comum “[...] a militância na JEC
(através da qual se despertou nossa vocação religiosa), o interesse pela Teologia e a
impossibilidade de separar a fé cristã do compromisso social.” (BETTO, 1983, p. 45).
Novamente vemos a junção de religião e política no pensamento do escritor.
Frei Betto é um adepto da Teologia da Libertação. A TdL começou a se desenvolver
na década de 1960 na América Latina. De acordo com o professor de Teologia Francisco de
Aquino Júnior (2016), “A teologia é inteligência da fé ou da salvação ou do reinado de Deus
e, neste sentido, é um exercício intelectual, uma atividade intelectiva.” (AQUINO JÚNIOR,
2016, p. 262). Portanto, a Teologia de Libertação se constitui como uma forma própria de
entendimento da fé, mas ainda dentro do cristianismo.
De acordo com o teólogo Gustavo Gutiérrez (1986), um dos fundadores da TdL, esta é
uma reflexão teológica que nasce da experiência latino americana de opressão e espoliação,
para acabar com a situação de injustiça aqui vivida e construir uma sociedade diferente. Em
suas palavras,
Não se trata de elaborar uma ideologia justificadora de posições já tomadas, nem de
busca febril de segurança ante os radicais questionamentos dirigidos à fé, nem de
forjar uma teologia da qual se “deduza” uma ação política. Trata-se de nos
deixarmos julgar pela palavra do Senhor, de pensar nossa fé, tornar mais pleno
nosso amor e dar razão de nossa esperança a partir de um compromisso que se quer
mais radical, total e eficaz. Trata-se de retomar os grandes temas da vida cristã na
radical mudança de perspectiva e dentro da nova problemática levantada por esse
compromisso. Isto é, o que busca a chamada “teologia da libertação.”
(GUTIÉRREZ, 1986, p. 9).
Nesta corrente teológica que Frei Betto se insere. Ela pôde ser formulada após o
Concílio Vaticano II, ocorrido entre outubro de 1962 e dezembro de 1965, durante o papado
de Papa João XXIII, que foi quem o convocou. As reuniões foram realizadas com o objetivo
de renovar a Igreja Católica em estrutura e função pastoral. Antes dele, o último concílio
ocorrido na cidade-Estado do Vaticano, sede da Igreja Católica, havia ocorrido entre
dezembro de 1869 e dezembro de 1870, ou seja, quase um século antes. O mundo havia
mudado desde então. A industrialização cresceu, duas guerras mundiais haviam se passado, o